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Foto do escritorRegina Mota

O lixo da internet, Drauzio Varella

A internet dá acesso ao melhor e ao pior da imaginação humana, às informações da maior relevância e às manifestações dos instintos mais desprezíveis. Corre no lixo que a infesta um vídeo de uma mulher que atribui a mim um alerta sobre supostos perigos das radiações emitidas por ocasião de radiografias dos dentes e das mamografias.


Ela diz que havia assistido a um programa de TV, no qual eu teria feito a malfadada afirmação. Mentira deslavada que atesta o mau-caráter de quem a inventou.


Invencionices como essa aparecem na rede todos os dias, mas algumas se espalham como vírus. Foi este o caso. Quero crer que a disseminação tenha ocorrido porque a autora se apropriou do nome de um médico envolvido com a divulgação de temas de saúde (caso contrário, não o teria feito).


Nas duas últimas semanas, perdi a conta de quantos WhatsApps recebi de amigos preocupados em saber se havia partido de mim tal aleivosia. Ao lado deles, quantos teriam acreditado nessa intervenção criminosa?


Digo criminosa não só pela calúnia que envolveu meu nome, mas pelo mal causado aos crédulos que compartilharam a advertência de uma desqualificada que cria boatos prejudiciais à saúde da população.


Há quantos anos os médicos brasileiros se empenham em ressaltar a importância das mamografias no diagnóstico precoce do câncer de mama? Quantas incautas que assistiram ao vídeo ficarão convencidas do contrário? Quem responderá criminalmente pelas mortes que ocorrerem?


É triste constatar que um avanço tecnológico como a internet, que provocou uma revolução sem precedentes nas comunicações humanas, esteja sujeito a nos expor aos desígnios do primeiro imbecil.


Como acontece com outras figuras públicas, circulam pela rede vários textos apócrifos atribuídos a mim. Nesse quesito, pelo menos, estou na companhia de gente que admiro: Luiz Fernando Verissimo, Caetano Veloso, Arnaldo Jabor, Jorge Luis Borges e Carlos Drummond, entre outros.


Num deles, o autor aconselha o pensamento positivo como arma contra a enfermidade. Segundo ele, quem está de bem com a vida não adoece e, na hipótese improvável de cair de cama, levantará lépido e fagueiro. É exatamente o oposto do que penso. Jogar no paciente a culpa do mal que o aflige é crueldade, no mínimo um desrespeito com os que morreram.


Outro aborda o relacionamento amoroso. Reúne uma série de obviedades melosas, alinhadas no estilo dos calendários com pensamentos seicho-no-ie. A primeira vez que o li, fiquei morto de vergonha do mau juízo que os amigos fariam de minhas pretensões literárias. Você não faz ideia de quantos elogios recebi de pessoas emocionadas com a profundidade filosófico-poética daquelas reflexões.


Agora, nenhum deles chega aos pés da repercussão de uma frase sobre os recursos investidos pela indústria farmacêutica em próteses mamárias e remédios para a disfunção erétil em comparação com aqueles destinados às pesquisas sobre a doença de Alzheimer.


A conclusão final de que a perda da memória levaria ao esquecimento da utilidade de seios e ereções é colocada com palavras que não falo sequer no botequim. O sucesso foi retumbante. Surgiu até uma versão em espanhol que me apresentava como Prêmio Nobel em Medicina.


Na semana em que "Estação Carandiru" foi publicado na Inglaterra, recebi um pedido de entrevista da rádio Madrid. Imaginei que o livro tivesse invadido a Europa.


Não era o caso. Fui colocado no ar com um locutor que começou a entrevista com a leitura da famigerada frase. Quando expliquei que não era de minha autoria, ele ficou pasmo. Sem saber o que dizer, perguntou como andava a saúde no Brasil. Dias mais tarde, a produção da Radiodiffusion-télévision française fez o mesmo, porém com o cuidado de me consultar antes sobre o Nobel e a autoria.


Semana passada, recebi um vídeo em que o escritor uruguaio Eduardo Galeano fez a leitura da frase numa conferência. Foi muito aplaudido.


Minha amiga Rita Cadillac assim exprimiu seu último desejo: "Quero ser enterrada de bruços para que o povo brasileiro me reconheça". Talvez em meu túmulo deva ser inscrita essa história dos seios e pênis eretos. Não consigo pensar em epitáfio que me torne mais reconhecível.


Folha de S.Paulo, 15 de outubro de 2016.

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