Cartunista, jornalista, escritor. Mas, acima de tudo, um crítico. Destacou-se pelo engajamento na luta contra a ditadura e a aids. Conviveu com o vírus contraído numa transfusão de sangue, e nunca se deu por vencido. Revolucionou a história dos quadrinhos e renovou o desenho nacional com seus personagens tipicamente brasileiros, fazendo do humor uma arma de resistência.
Tudo começou em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. Lá nasceu e cresceu na década de 1940 o menino que entraria para a história como um dos mais importantes desenhistas brasileiros. Henrique de Souza Filho, o Henfil, frequentou o colégio Arnaldo da Ordem do Verbo Divino, um curso supletivo e a faculdade de Ciências Sociais, que abandonou dois meses depois. Foi embalador de queijos, boy de agência de publicidade e revisor de textos, até especializar-se, no início da década de 1960, em ilustrações e quadrinhos.
Estreou em 1964 na revista Alterosa, a convite do editor Roberto Drummond. Lá nasceram os famosos Fradinhos e o apelido que carregou pela vida afora – contração de Henrique e Filho. Logo estaria publicando desenhos em O Diário de Minas, no carioca Jornal dos Sports e nas revistas Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro.
Ainda em meados dos anos 1960 foi para o Rio de Janeiro, levando debaixo do braço seu livro Hiroxima meu Humor. O objetivo era conseguir que Millôr Fernandes – o grande nome do desenho e do humor na época – assinasse o prefácio da obra. Sem êxito. Voltaria ao Rio anos depois, agora não mais de passagem. Começou a trabalhar para o Jornal do Brasil e O Pasquim, tornando-se um nome conhecido por todo o País.
Guerrilheiro do Cartum
Uma das características mais marcantes de Henfil foi o envolvimento com os movimentos sociais e políticos contra a ditadura militar (1964-1985). “Tenho um instrumento universal nas mãos que é o humor. Nasci no berço da luta de classes. Eu quero ser famoso como um cara que é mais um espinho contra o estado das coisas. Essa fama eu quero para mim”, dizia.
O engajamento político era traço de família. Irmão do sociólogo Betinho e do compositor Chico Mário, Henfil era, como eles, hemofílico. E também contraiu o vírus HIV numa transfusão de sangue. “Por causa da hemofilia, Henfil vivia sempre com a espada na cabeça”, lembra Ziraldo. “Ele sentia que podia morrer a qualquer momento. E se defendia do mundo através do humor.”
Para muitos dos que o conheceram, o desenhista era uma mistura dos dois fradinhos que levou para O Pasquim quando a meca do jornalismo bem-humorado de esquerda o convocou para suas frentes. A personalidade dos dois era uma convocação para a tomada de consciência da situação em que se encontrava o Brasil. Falava da acomodação e da hipocrisia incorporadas ao fradinho Cumprido, e da iconoclastia presente no fradinho Baixim.
Outro personagem de destaque foi a esperançosa Graúna que, ao lado do cangaceiro Zeferino e de Bode Orelana, denunciava, em pleno milagre econômico, as disparidades entre o Norte e o Sul do País. Também povoaram suas páginas Pó de Arroz, Orelhão, Cabôco Mamadô, Urubú, Bacalhau e Ubaldo Paranóico – figuras que exerceram um papel vital na renovação do desenho humorístico brasileiro. Apoiavam-se na descolonização numa época em que os quadrinhos nacionais tinham seu desenvolvimeno sufocado por publicações estrangeiras.
Após uma década de trabalho no Rio, Henfil mudou para Nova Iorque para fugir da censura e tratar da saúde. Publicou Os Fradinhos, rebatizados de Mad Monks, em cerca de 200 jornais. Mas o público começou a reclamar do humor pesado, e o acordo com o distribuidor acabou. Assim, dois anos depois, Henfil estava de volta ao Brasil. Sua estadia na terra do Tio Sam rendeu o livro Diário de um Cucaracha, que fala do preconceito dos norte-americanos contra estrangeiros, especialmente os latinos.
Nos palcos e telas
Em 1977, Henfil começou a colaborar com a revista IstoÉ. Cartas da Mãe era o nome da coluna em que críticas e desabafos do cartunista vinham à tona sob o pretexto de serem endereçadas a dona Maria da Conceição. Nas cartas, burlava a censura e tratava de temas como exílio político e anistia.
No início da década de 1980, publicou os livros Henfil na China e Antes da Coca-Cola. Envolveu-se também com teatro e cinema. Realizou a peça A Revista do Henfil, e em 1984 escreveu e dirigiu o filme Tanga – Deu no New York Times. Nas telinhas, foi redator da TV Mulher, da Globo. Publicou ainda os livros Diretas Já, Fradim de Libertação e Como se Faz Humor Político.
Ciente de que o tempo não jogava a seu favor, produziu até o fim da vida. Morreu em 4 de janeiro de 1988, vítima de complicações da aids. Seus personagens, entretanto, vivem até hoje em livros escolares, revistas e em qualquer iniciativa de retratar o tempo em que viveu. A obra de Henfil é um registro de seu tempo.
BRASIL – Almanaque de Cultura Popular (janeiro de 2009)
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