Há leitores que seguem frases com miopia, sem ver a obra em sua inteireza
Traduzir é muito bom. Tem algo de palavras cruzadas: é imperioso encontrar o termo exato, o mais preciso possível. Pede sintonia com o espírito do original, e não creio que haja maneira melhor de se conhecer um livro no seu âmago do que pela tradução.
Traduzir vai além de passar um texto de uma língua para a outra. Trata-se de expor, no idioma de chegada, uma concepção, ou uma leitura singular do original. Se um escrito nunca é um “em si”, se ele só existe segundo cada leitor, a tradução é uma reencarnação do original. Borges comparou quatro versões das “Mil e uma Noites” para línguas diferentes e concluiu: a boa tradução traz consigo a cultura individual e a do momento em que vive o tradutor.
Nestes tempos de retiro, traduzi "As Aventuras de Pinóquio", para a editora 34.
Todo o mundo sabe quem é Pinóquio, com seu nariz que cresce a cada mentira, mas o personagem ganhou vida independente, circulando no mundo por conta própria, e com isso perdeu a espessura, a complexidade que lhe dá o livro de Collodi.
Teve, e continua tendo até hoje, muitas adaptações para o cinema e a televisão. Entre muitas, a Disney consagrou-lhe um desenho que, poético, não foi menos falsificador e redutor das inacreditáveis aventuras pelas quais passa a marionete sem fios. Roberto Benigni estrela um “Pinóquio”, dirigido por Matteo Garrone, que está nas telas, tenta uma fidelidade maior ao original e resulta num belo filme.
Pinóquio percorre um mundo de crueldade e pobreza, no limite da fome e da miséria, mas tratado com ironia e humor. Gepeto diz como se inspirou para escolher o nome da marionete: “Conheci uma família inteira de Pinóquios: Pinóquio o pai, Pinóquia a mãe, e Pinóquios os garotos, e passavam muito bem. O mais rico dentre eles pedia esmola”.
As aventuras se sucedem por meio de imaginação desbragada e grande desrespeito pela verossimilhança. O tom é direto, com enorme força visual. Nenhuma criança poderá esquecer o pescador monstruoso, verde, fritando uma batelada de peixes, entre os quais se encontra Pinóquio e que ele toma por um caranguejo; ou os habitantes da cidade Pegatrouxa; ou qualquer das situações diversas, tão concretas, muitas apavorantes.
Os contos infantis comportam sempre uma boa dose de terror. Por ele, cria-se o suspense que prende a respiração das crianças e lhes desperta o desejo de saber mais, de ler mais.
Em “Pinóquio”, as situações horripilantes se atropelam. Um diálogo assim: “— Não há ninguém nesta casa; estão todos mortos. — Abra-me pelo menos você! — gritou Pinóquio, chorando e suplicando. — Eu também estou morta. — Morta? E então o que você está fazendo aí na janela? — Estou esperando o caixão vir para me levar embora”. Poderia estar num filme de um dos mestres do terror italiano, Bava, Fulci ou Argento.
Pinóquio enforcado; Pinóquio transformado em burro e, amarrado com uma pedra, atirado na água para se afogar; Pinóquio quase assassino; Pinóquio encoleirado e obrigado a se fazer de cachorro; Pinóquio que assiste aos coelhos funerários virem para buscar seu cadáver: as situações abomináveis não cessam.
Nestes tempos sumários de patrulhas, controles, denúncias, delações e cancelamentos, penso em como não se deve ler “Pinóquio”. Por exemplo, condenar o livro por causa de suas passagens angustiantes. Ou, quem sabe, expurgá-lo dessas passagens. Entretanto, as crianças sabem que elas “não são para valer”, como num desenho do Papa-Léguas, do Pica-Pau ou de Tom e Jerry. Pinóquio reaparece, renasce, e pouco importa a coerência.
Há mais. As desgraças ocorrem no livro porque Pinóquio não é bem comportado. Foge da escola, gosta das más companhias, não ouve os mais velhos. Essas travessuras são compensadas por um terrível e constante sentimento de culpa, associado diretamente ao merecimento. Não seria difícil imaginar alguma boa alma se indignando contra a “meritocracia” embutida no volume de Collodi.
Há leitores que seguem as frases com a miopia de formigas (se é que há miopia entre as formigas), isolando-as, recortando-as, sem ver o imenso benefício, muito maior, trazido pela obra na sua inteireza. No passado, é bem provável que existam textos medíocres capazes de satisfazer as exigências da correção política, mas não valeriam a pena de serem lidos.
Triste livro, se Pinóquio fosse um bom menino. São as formidáveis aventuras da marionete que põem em xeque as lições de moral, e o exemplar garoto “de verdade” aparece só nas últimas linhas porque não tem história: sua vida sem graça não merece ser contada.
Folha de S.Paulo, 28 de fev. 2021.
· Professor de história da arte na Unicamp e autor de “O corpo da Liberdade”
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